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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O calor das memórias, uma realidade fria e um futuro imprevisível.

    Parecia um sonho. O lago estava calmo e a floresta em redor silenciosa. Demorou um minuto até o ar estar coberto de risos. A menininha brincava com os seus guerreiros, que um dia lutariam de espada de metal na mão e de magia e coragem no coração. Aquela realidade nunca poderia desaparecer. Aquele momento ficaria na memória. O sol aquecia a pele molhada dos irmãos. As pequenas brincadeiras, lutas de irmãos... Dois rebolam e ela risse enquanto eles são separados pelos mais velhos. Ela era aquilo que os mantinha juntos, era a estrela que os ajuda a ver o caminho certo. O vento trazia todos os aromas. Sentia-se o doce aroma da flores do grande jardim e dos preparados da cozinha. Trazia ainda o som dos cavalos a correrem e das espadas a embaterem contra os escudos. A infância não podia ser melhor. Estar rodeada de pessoas que a amam. Como não poderia ela ser feliz? Como poderia não desejar estar presa naquele momento?
    A verdade é que aquele momento era outra realidade, uma realidade distante e que agora parecia mais quente que qualquer outra memória que antes fora revivida. Não só parecia um sonho como se tratava de uma memória revivida num sono profundo. A realidade era demasiado fria para a Pequena querer viver nela. Tudo pareceu acontecer demasiado rápido. Perder o amor, os irmãos, a liberdade e a terra. Navegar num mar desconhecido, indo em direção a uma terra apenas descrita nas histórias de batalha. Ter de largar o mundo acolhedor para partir nos braços daquele que a salvou mas que ao mesmo tempo a capturou. Perder-se cada vez mais, sem voz para se rebelar contra os Deuses, a sua avó e o rumo pela qual o seu destino a levou.
    O vento que na memória trazia sons e cheiro quentes, acolhedores e familiares fora substituído por um vento frio, mortal e que trazia sons assustadores. Só se sentia o cheiro do suor dos homens sobreposto com o cheiro da água salgada. As ondas não eram nada como aquelas que ela se lembrava de ver a bailarem com as rochas e a areia da praia. Estas eram violentas e vibrantes. E não era apenas o vento que cortava qualquer fonte de calor de tão gelado que era, a água era mais cruel que a do lago. A voz forte dos homens e a sua língua brusca não passava de mais um símbolo de que o pesadelo tinha-se tornado realidade. Tudo neles era violento, tal como as histórias que ouvira em criança.
    Fugir não parecia ser uma opção a considerar naquele momento, o mar era o que a rodeava, talvez devesse esperar e fugir quando tudo parecesse a seu favor. E assim o fez. Esperou impacientemente com apenas duas companhias os seus pesadelos e o homem bárbaro que falava a mesma língua que ela e que teimava em fazer com que ela comesse algo. O barco avançou e o mar continuava violento, prevendo que a vida da Pequena (nome dado pelo capitão a jovem) já não seria tão simples como antes e seria mil vezes mais dolorosa do que até então.
    Por fim, terra firme. Ainda assim, aquele lugar não era de todo familiar aquela rapariga que nunca sairá do conforto da sua terra mas esta era a oportunidade esperada, depois de afastar o homem que a guardava começou a correr. Não foi longe e mais uma regra barbara foi-lhe exposta. O capitão lutou por ela... Ela era sua, ela era como uma mercadoria... E na paragem seguinte as suas suspeitas comprovavam-se, aquele capitão era o seu dono e tinha planos claros para ela, infelizmente ela não sabia o quanto perigosos esses planos seriam. O futuro começava cada vez mais a parecer imprevisível.
    A sua essência começava a desaparecer, constantemente lavada pelo mar gelado. O destino começava a mostrar que pode ser cruel e todas as suas ações pareciam não corresponder às suas expetativas. Os sonhos continuavam a ser o seu tormento e a morte sussurrava ao seu ouvido. Os acontecimentos que tinham ocorrido antes começavam a fazer sentido agora. O seu sonho maldito, que durante anos não parecia fazer sentido, tornava-se claro agora, mas mais perguntas surgiam. Ela iria padecer tal como os seus irmãos, tal como o seu amor. Ela iria desaparecer com o resto do mundo, nada parecia fazer sentido se não esse destino. A sorte mostrava que não estava do seu lado e ela via-se agora entregue ao desespero.
    Felizmente a sua avó manteve-se presente, ainda que levemente. Disse-lhe para ela lutar pela vida e pelo mundo. E assim ela ergueu a cabeça e começou o novo capítulo. Numa nova terra no horizonte. Numa realidade fria, com um futuro mais fino e imprevisível que o gelo, com as memórias quentes e acolhedoras da sua infância no coração e o destino do mundo nas suas pequenas mãos.
 
 
    Este texto é sobre a Cat (personagem da Saga das Pedras Mágicas de Sandra Carvalho) e sobre aquilo que lhe deve ter passado pela cabeça durante o tempo em que esteve no barco depois de ter sido resgatada por Throst e levada para a terra dos Vikings. Para quem conhece a Saga espero que gostem da minha visão daquele momento. Para quem conhece espero que este texto vos leve a ler os livro da Sandra pois eles são bastantes especiais e repletos de mistério e magia.
 
(P.S.: Este texto também se encontra no blog *FanFic's Sandra Carvalho*.)

1 comentário:

Daniela disse...

Nao conhecia o livro mas agora quero ler, fizeste um optimo trabalho neste texto, adoro (: