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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Encantador de Sombras

O negro da noite cobre a luminosidade do Encantador de almas. Passei despercebida ao seu lado, vendada pela impureza dos meus próprios pensamentos, no entanto passei. Passei, folego preso e vestido escarlate no corpo. Desejei ser levada e desejei que ninguém conseguisse ver a cascada de lágrimas que corriam por detrás da venda. Perdi-me enquanto passava por ele. Corpo coberto por uma capa negra, sozinho na rua parcialmente deserta, numa noite que apenas eu sabia ser a encarnação da solidão. Passei e, para trás, ficou sem reação. Enlouquecida pela minha própria vida e mente, não fiz atenção aos passos vibrantes do Encantador de Sombras. Continuei, vendada e perdida.
Ainda me é possível lembrar todas as perdições. Tantas dores passadas e tantos sentimentos apodrecem na parede da casa abandonada. Não noto os passos que me seguem. Não noto porque me recuso a virar e ver quem é que me persegue tão persistentemente. A dor, que agarro firmemente nos braços, não me permite olhar em redor quando a curiosidade me abate. Por isso, sigo. Deixo ficar no anterior horizonte quem passei. E a rua desesperadamente deserta sorri-me, falsa e cruel. Tento libertar-me das emoções petrificadas no tempo. Ignoro a possibilidade de lutar contra a venda nos meus olhos.
Frio… Não sabia que o sofrimento também se mistificava, adotando o corpo invisível do frio. Nunca me fora dito que as minhas mãos iriam tremer como folha ao sabor do vento. Retirei o braço direito do aperto cerrado sobre o meu peito e levei a mão á cara. Apanhei uma lágrima. Apenas uma. Era o suficiente para tomar consciência que tinha de parar. Em frente a um velho eucalipto foi onde fiquei. O cheiro fresco a limpar o mau ar em meu redor. Nada mais perfeito.
Paralisa… Era como a minha mente estava. O rasto da podridão de sentimentos seguira-me. Justamente sacrificados em nome da minha sanidade. Como podia ter sido tão ignorante ao ponto de realmente acreditar que receberia a sanidade se destruísse tudo o que sentia e podia vir a sentir? E agora… Agora as Sombras vieram reclamar o que era seu por direito. De nada valia gritar todo o ar dos meus pulmões. De nada servia cair de joelhos e fechar as mãos na terra.
Porém foi o que fiz. Mãos cravadas na terra ao pé da velha árvore. Não gritei. A voz recusou-se a cumprir a minha ordem. Bati no chão poeirento. Mil lágrimas sugadas pela terra. Sentia-me pequena, insignificante e inútil. Os passos atrás de mim eram claros. Era a minha hora. O meu destino. A Noite colocara-me uma venda e as Sombras viram-me buscar. Restava-me engolir o pouco que me restava do meu orgulho, erguer-me e segui-las. Arrepender-me para o resto da vida, quando não parei e amei.
Levantei-me, esquecendo de sacudir a sujidade do vestido. No entanto, quem já tinha as mãos sujas com o próprio sangue não se importava do estado da sua roupa. Virei-me lentamente, olhos fechados por trás da venda negra. Senti o ar quente na minha cara. Chegara a hora de partir com o Encantador de Sombras, o dono da noite e das almas perdidas, o único capaz de restaurar a mente partida dos Condenados.
Abri a boca e fechei-a automaticamente ao lembrar-me que a minha voz partira. Comecei a erguer a mão em busca de algo, alguém. Perdi a força no braço e desisti de tentar. O ar à minha frente moveu-se. Petrifiquei. Ouvi o rasgar do ar seguido do toque nos meus cabelos. Tremi involuntariamente. Duas mãos percorriam todos os fios de cabelo até encontrarem o nó inquebrável da venda. Os dedos grandes batucaram duas vezes e a venda desfez-se em pó prateado.
Com medo de estar noutro mundo, não abri os olhos. Podia procurar algo reconhecível com as mãos, no entanto a força que habitava o meu corpo mal chegava para me sustentar o peso, nunca daria para mover os braços e caminhar. Por isso fiquei. Fiquei quieta e tentei escutar. Esperava ouvir passos. Nada… O ar quente ainda me batia de leve na face e um cheiro a maça cozida e mel inundava o ar em meu redor.
Era doce e quente. Era apenas o que pensava. Nada mais que isso. Seria este um mundo diferente ou o cheiro de quem quer que estivesse à minha frente. Inclinei-me em direção à origem do mel. Cambaleei, fraca e desnorteada, e fui amparada pelas mesmas mãos que me salvaram da venda. Abri os olhos instintivamente e negro foi o que vi. Tentei olhar nos seus olhos. Tudo o que vi foi o que esperava. Uns olhos negros escondidos por um capuz.
Cuidadosamente fui largada no chão. Sentada na terra dura, tremendo de medo e frio. Ele não falou. Esperei ver uma luz ou até mesmo a neblina. Nada aconteceu. Olhei novamente para o Encantador de Sombras. Ele retirava da capa um embrulho tão negro como o da sua roupa. Desatou o laço e abriu o tecido. Colocou-o sobre os meus ombros e cobriu a minha cabeça com o capuz. A capa era do meu tamanho. Admirei a textura dois segundos a mais do que queria. Quando os meus olhos voltaram ao lugar onde ele estava, já o homem desaparecia no horizonte, por entre casa e mendigos.
Levantei-me pela segunda vez. Apertei a capa ao corpo, sacudi a poeira e caminhei. Caminhei sem rumo aparente. Passo atrás de passou. Passei por mendigos e homens a saírem de ruelas escuras. Passei por mulheres com um cesto nos braços. Passei por carroças de comerciantes e por guardas fardados e armados. Vi vendas nos olhos de muitos. Porém tal escuridão não parecia impedi-los de continuar com o seu dia.
O sol nascia como habitual. Nada de invulgar parecia decorrer. Deixei de ver o quarto em ruinas. Deixei de ver os sentimentos pregados na parede lascada. Parei de sentir o vazio na alma. Ou talvez… Talvez a alma fosse diferente. Talvez eu fosse diferente. Ou talvez o mundo o fosse. Fosse qual fosse a razão, continuei a andar. Só eu e as sombras. Desejando voltar a ver aquele que me dera a oportunidade de viver. Se viver e continuar. Continuar sempre… Sempre a seguir um nada sem rumo.