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terça-feira, 6 de agosto de 2013

A queda do anjo




Virá o dia em que um anjo, perdido no seu próprio inconsciente, volte as costas ao horizonte e parta para o rio das sombras. Nem no céu nem na terra, a água da vida o poderá salvar da destruição profunda. Durante toda a sua sublime existência, o anjo partiu corações, guiou almas pelos caminhos de terra, sangrou em batalhas, testou a coragem e força da mente humana, despedaçou a capacidade sorrateira de atingir o pedestal.
Caiu mil vezes e mil vezes regressou. Voltou marcado pelos animais dos terrenos inferiores e superiores. Marcado com golpes sangrentos de miséria e ignorância. De todas as lutas e malevolências, a necessidade de seguir o curso do rio, desde a nascente à mortífera foz, foi, é e sempre será a mais inconcebível queda. Alias, nada tornaria mais doce a viagem que a companhia amada daqueles que conquistaram a selva das promessas esquecidas.
O tempo encurtou os seus dias. O rio fervilhou e gelou sete vezes. Os demónios roubavam a dor dos humanos. O anjo partiu. Deixou de sentir. Viu e largou. A viagem seria atribulada e a partida nada adiantara se não um sabor, meloso e imperfeito, de que algo perder-se-ia nas correntes. Nos olhos nada mais do que uma ponte queimada e abatida. Coração gelado e parado. Alma desfeita e possivelmente incapacitada.
Passo a passo ele foi encaminhado para limbo. As almas angustiadas disseram para ele larga, disseram para ele esquecer. Com os olhos brancos e dissipados, ele seguiu. Ignorou o tempo, o sol, a lua e as almas. Virá o dia. E esse dia chegou. Parte da alma consumida pela desonra, desapegada das raízes que o fixavam na terra e no céu. As mãos atadas com fios invisíveis. As cores derretidas a escorrerem pelos seres vivos. Tudo o que fez, observou, viveu, derrotou e destruiu fazia ricochete nos espelhos do mundo.
Devia saber que o dia chegaria. Devia tê-lo sentido com todo o sangue que tinha a correr pelo corpo. Devia ter previsto a decadência do seu ser. A fuga inconsciente do abismo não devia ter definido a sua queda. Se é vida que o mundo quer no futuro, talvez não seja tarde. Talvez... Talvez exista esperança.