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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Último suspiro das ruínas



Um suspiro, um beijo, um abraço, uma caricia profunda do arrepio do vento. A mão que agarra a mão, o corpo que puxa o corpo numa aventura da vida. Ou o que resta dela… Sabe Deus as consequências do céu estrelado, do olhar parado e ignorante do viajante, e da última armadura de metal. A demorada e suave espera por um primeiro sorriso. Sorriso que não lhe pertence. Que pertence unicamente a quem o expressa e nunca a quem o recebe. Porque quem o observa nem sempre o compreende. Sabe Deus o que se faria se não se pudesse sorrir para quem entende.
O golpe não seria nada, comparado à desilusão que poderia sentir se a minha mão não vibrasse com a imagem da guerra. Como se ela própria desejasse ser arrancada do meu corpo para fugir, seguindo o caminho que a leva ao campo. Desilusão… Triste é imitar emoções que não sentimos e sentir aquelas que não serão aceites. Isso é desilusão.
Olhar nos olhos de outra pessoa e pedir a Deus que ela não tenha tais pensamentos. Ideias preconcebidas pelo resto da sociedade. Pedir explicações quando sabemos a verdade. Ninguém sabe o que se passa. Desilusão é ouvir alguém afirmar que nos compreende. Ninguém sabe o que sentimos. Desilusão ao olharmos para as nossas mãos e ver o sangue, invisível para o mundo, correr como uma cascata. Desilusão em nós próprios.
Cobarde… Roubar um beijo, pois mais vale partir consumado que desiludido e zangado com a falta de coragem. Correr elas ruas desertas numa manhã de inverno, enquanto a chuva habita os céus e o sol tenta ser livre. Tal como todos os seres humanos presos na jaula de vidro, tentar sair. Pessoas como eu olham para trás e, tentando escapar dos olhares malignos, recusamo-nos a desistir. Assim pensava…
Saltar as barreiras da grande casa assombrada. Ver as ruínas, os quadros queimados e as folhas envelhecidas no chão. Louvar os bons momentos. Pedir por mais beijos, mais abraços, mais aventuras guiadas pelas mesmas mãos, que me tocam quando o perigo é iminente e o medo é excessivo. Sonhar com cores e sorrisos, que nunca serão meus. Fechar os olhos e respirar o aroma da destruição e beleza. Toda a contradição que em tempos fora apenas uma diretiva.
A lealdade do viajante para com toda a magnitude das ruinas. Vezes e vezes, ele voltava à casa. Nós voltávamos… Eu voltava. Mãos cerradas, sonhos na mente, olhos a cintilarem de possibilidades. Sabe Deus as possibilidades que verdadeiramente me agradam. E apenas Ele sabe o quanto a caminhada custa, porque para me é apenas mais um dia. Mais uma das muitas loucuras a que sou sujeita.
As faíscas que saltam no meu coração em cada instante da minha vida. Imperfeitas e incontroladas luzes multicolores espalhadas no horizonte. Intricado padrão negro na pele bege. Beijos perdidos, sorrisos desaparecidos, raios e explosões. Tudo leva à petrificação. Tudo faz lembrar aquele passado, aquela loucura, as aventuras que tivera nas mãos do destino. Se tal entidade realmente existe. Tudo, pela última vez, provoca a solidão, a tristeza que durante anos foi e veio no meu coração.
O cartão lançado para a fogueira, consumido pelo mesmo fogo que horas antes nos aquecia, na casa assombrada inevitavelmente nossa. Enquanto as chamas se soltam dos troncos de madeira secos, e tentam o velho e húmido cartão, os viajantes vêm a lua resplandecer. Ele, guarda das memórias insignificantes, escurece. O fim… Desfeito em cinzas no chão da lareira. Dois beijos, dezenas de braços e um longo adeus. Um contínuo e arrepiante grito…
Pobre criança, deixada no campo, desampara, desiludida. Destruidora de almas… As memórias são vagas. O tempo passa pelas minhas mãos como o vento. Mãos frias… Nem mesmo o calor de outras as tornar normais. No campo, a criança dá dois passos na minha direção. Já não é uma rapariga. É a única que vejo. Não preciso de lhe tocar para compreender que ela não existe. Nada no sonho existe. Não neste preciso momento. Passado… Futuro… Ineludível e imperfeita loucura.
Nós… Que nós? Nesta casa arruinada não existe nós. O viajante partiu, o cartão queimou, a rapariga evaporou, o campo fica negro. As mãos frias, vermelhas e trementes agarram o que nunca foi meu. O que nunca será meu. O que não existe. Para quê? Para depois partir? Para agradece a Deus a aventura que nunca tive? Aquela que Ele sabe ser a minha vergonha, o meu desejo, a minha loucura… Para trás repousa um suspiro, um beijo, um abraço. Uma eterna confissão. Nada mais. Apenas pó e ruínas.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Boneca de porcelana num dia de neve



Vejo o azul perdido dos olhos vidrados. A pele branca, como a escadaria de mármore, perde o seu brilho e o seu calor. As lágrimas secas, depositadas nas bochechas sem vigor. Os lábios vermelhos tentando os amantes. Os longos cabelos ondulam pelas suas costas como uma cascata negra. Tudo para atingir a postura de uma boneca de porcelana. A beleza prometida durante a primeira queda de neve.
O frio a cobrir a promessa passada, cruelmente sacrificando-a em prole da sua sobrevivência. Os arrepios de prazer numa manhã de solene exploração de um novo dia. O toque das mãos ásperas do guerreiro. Num dia… Um simples e monótono dia, onde nada mais se pode esperar que não andar pelas ruas e ver o tempo passar. Nesse mesmo dia, por mais que ela queira erguer-se da cadeira e observar o mundo, é impossível. Não porque o seu corpo é demasiado frágil. Não… Essa não é de todo a razão.
A petrificação do seu corpo levava-a a deixar para trás tudo o que antes louvava. O caminhar pelas ruas. A monotonia de um dia de neve. O passeio pelo jardim, sol a bater na cara e pássaros a cantar. Agora… Devido à promessa passada. Devido à beleza antes nunca alcançada, se não pelas mãos do trabalhador dotado. Devido ao desejo de vir a ser a boneca sentada numa cadeira e ver o seu mestre criar outras como ela. Devido a todo o tempo perdido a desejar aquilo que nenhuma mulher tinha. Ela iniciou a transformação. Boneca de porcelana num dia de neve.
A razão… A derradeira, cruel e fria razão para ela não sair é o seu desejo. Com a cabeça ligeiramente inclinada para a direita, observando os seres humanos a passarem na rua, ela espera. Espera obter a beleza prometida durante a primeira queda de neve. O dia de verão nada trará se não a vontade de receber o toque do sol e receber o arrepio do vento quente. De voltar a ver o guerreiro que antes partira para a guerra. De receber o seu toque. Porém, ela fica quieta. Respirando calmamente, vendo o dia passar até a noite chegar e a cama a acolher de braços aberto.
Apenas ela sabe. Apenas ela aguarda quieta, na mesma cadeira. Petrificando lentamente. Não será a beleza física que a chama agora. Talvez na noite anterior fora. Não nesta manhã. É a beleza do dia em que a porta abrira e que o vento traga o toque áspero daquele que prometera encontra-la na loja das bonecas de porcelana. Nem lágrimas nem sorrisos. Petrificação pela espera. Batom vermelho preste a ser quebrado. Pele branca desejando por receber o corar da humanidade nela. Cabelos pedindo para serem tocados.
E ela espera. Olhando pela janela da sua loja. Rodeada pelas bonecas que criara. Bonecas que, tal como ela, aguardavam o dia em que o seu destino entrasse pela porta e as abraçasse. A beleza de tal dia. A Boneca de porcelana esperando pelo dia. Por ver a promessa passada, cumprida. O sacrifício do seu corpo parcialmente petrificado em prole da promessa. Sentada ela fica. Dia após dia… Respirando suavemente. Cabelos deslizando como correntes de água negra. Olhos azuis perdidos no horizonte, copiando o movimento do céu. E espera… Na cadeira ela espera…