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terça-feira, 11 de novembro de 2014

Folhas Brancas

Para o Pedro, que me inspirou com as suas palavras, levando-me no final a criar este texto para ele, para todos os leitores e, até certo ponto, para mim própria.



As páginas brancas do caderno que repousa aberto na escrevaninha recolhem o pó da casa abandonada. Num tempo em que nada era se não elegância e melodrama, vi os corredores cobertos de retratos dos antepassados que nunca conhecemos. Esperei pela noite, quando a lua estava bem alta e cheia no céu estrelado. Vi os raios a atravessarem os vidros tenuemente manchados do sol e do passado imperturbado. Se não soubesse melhor, diria ser capaz de encontrar as memórias ainda no ar das divisões, no caderno aberto e intocado em cima de um tampo de madeira escura e cravado com a bela arte de um artista desaparecido.

O salão, amplo e gritando por uma melodia, resguarda a sua beleza do sofrimento alheio, das crianças que tentam ver por entre os vidros sujos, do futuro marcado a um passo cego. Entro de olhos abertos. Sinto aquela energia romântica no ambiente quieto, as memórias de centenas de pessoas dançando naquele chão com cores cremes intercaladas com aquelas que noutrora foram vibrantes. Fecho os olhos e respiro fundo, imaginando um mundo nunca antes visto, se não nos anos guardados pelas paredes beges, pelas cortinas vermelhas, pelo pequeno palco onde uma banda tocaria para divertimento de todos. Vejo as pautas quebradiças perdidas no chão de madeira desse mesmo palco.

Arregaço o vestido comprido e negro como a noite de há milhares de anos. A lua entrega-nos os seus raios, tranca a paixão nos quartos fechados e respira sobre as páginas brancas de um caderno. Temo nunca ser capaz de escrever nele. Deixo-o repousar na escrevaninha de minha mãe, avó, bisavó, e todas as mulheres que me antecederam. Viro costas ao salão, acreditando que ao manter o meu percurso, talvez as memórias desapareçam na minha mente e me deixem terminar o luto. Subo pelas escadas de mármore, o eco dos meus passos levantam-se, deambulando por um corredor deserto. Tapeçarias expostas nas paredes frias de pedra, grandes lareiras com restos de cinzas, cadeirões de veludo, camas de postes, rendas a tombarem, criando uma barreira quase opaca.

Deparo-me novamente com o quarto, em tempos meu, num passado onde a loucura de um amor era dramática, onde partíamos o pão dizendo sermos justos para os criados e para todo o mundo. Peço por uma palavra, uma simples palavra, tal como as folhas brancas suplicam pela pena que trará a tinta. Pela janela da varanda vejo o jardim arbóreo, as heras a treparem pelas paredes de pedra, as flores e arbustos a crescer com a liberdade que nunca tive. As cicatrizes que a fonte me dera, ao descobrir a verdadeira fachada daquele que jurara sobre a campa de sua mãe o seu amor por mim. Os momentos passado sobre a sombra do grande castanheiro, sentada numa manta colorida que eu própria tecera, vendo os pássaros voarem de ramo em ramo, colhendo flores para uma coroa, e esquecendo o presente entretendo-me com os meus pensamentos. Todo ele, toda aquela natureza agora irregular, trazia-me um sentimento nostálgico.

Passei a ponta dos dedos pela cadeira em frente da escrevaninha. Aquela que fora o alento dos meus suspiros, a guarda das minhas aflições, o apoio que necessitava para as cartas. Respirei fundo, para além de todo o pó e tempo que acumulava-se nos tecidos, o cheiro das rosas deixadas todos os dias nos jarros, ainda flutuava. Talvez fosse a minha alma relembrando o quanto aquele lugar era o meu lar, a minha infância, o meu passado. Doía tanto ver todos os cantos da casa, só para voltar a dizer “adeus”. Uma lágrima caiu pela minha bochecha, secando no pescoço. O aperto no meu peito, a loucura na minha alma, o drama entranhado nas paredes do quarto fizeram-me tremer.

Sacudi o acento almofadado da cadeira, e sentei-me. Esperei aquilo que pareceu uma eternidade, apenas sentada, mãos no meu colo, vestido caindo pelas minhas pernas e raspando delicadamente no chão de pedra. Soprei o pó do caderno vazio. Partículas voaram à minha frente, brilhando com os raios lunares. As páginas, em tempos brancas, eram agora manchadas pelo bege. O tempo atacara-as como todos os outros vidros, paredes, escadarias e memórias. O tinteiro secara. Abri com cuidado a gaveta e peguei no monte de cartas atadas com uma fita azul clara. Sorri. Não seria hoje, nem amanhã sequer. Fechei o caderno e peguei nas memórias do meu passado. Levantei-me com cuidado e caminhei em direção da porta. Respirei uma última vez, aquele aroma fantasma de flores que morreram nos vasos pintados com cuidado e paciência. Passei os olhos pela beleza iluminada pelo branco da lua e fechei a porta de madeira.

Desapareci nos corredores como se fosse o vulto de uma casa assombrada. Murmurando a melodia de uma música à muito perdida. Vagueando nas memórias de um passado onde havia exagero nas roupas, onde loucuras por amor eram descritas em livros, onde suspiros pelos cavalheiros ressoavam pelos salões. Um instante na vasta época… Leve seria o meu sussurro, abafado pelas tapeçarias nas paredes, crepitando com as chamas que aqueciam a casa numa altura possuída pela excessividade. Desaparecerei pelos corredores com as cartas e caderno nos braços, de luto por uma pessoa que nunca ninguém compreenderá, sozinha para viver a existência como a assombração no fundo de uma rua. Procurando o amor que não me falhe, aquele que escrevera as cartas.

Folhas brancas na arca trancada a sete chaves. Deixada debaixo de uma cama não usada há alguns milhares de anos. Pedindo um beijo de boa noite como todas as outras damas na minha sociedade. O meu riso embate contra todas as paredes. Folhas brancas num caderno vazio. O vulto que se vê pelas janelas com o toque opaco, faz fugir quem nunca teve no coração a coragem para entrar e dançar com aquela que durante anos aguardou.

Ouvi a porta pesada ranger, o vento entrou trazendo consigo folhas secas. Escondi-me nas sombras do topa da escadaria principal. Caminhando com uma certa determinação, ignorando os apelos de quem quer que esteja do outro lado, na rua fria, ele entra. Espreitei, saindo do meu esconderijo. A memória de um tempo em que correndo atrás de uma menina, o vi correr. Escondida atrás do mesmo castanheiro que me dava abrigo do calor. Ele parou a passos de mim. Lembro-me de poisar o caderno branco por escrever, o mesmo que tinha nos meus braços, aquele que prometera marcar no momento em que nos voltássemos a encontrar.

Atravessei o corredor e desci as escadas. Fios de cabelo a caírem sobre a minha face. Fixei-o nos olhos. Os mesmos olhos que me fizeram apaixonar pela primeira vez por ele. O tempo parou. O vento deixou de soprar. Os apelos cortaram. O toque dos seus dedos, enquanto afastava os meus cabelos, era quente. Em segundos… Desaparecemos. Um riso fez ouvir e passos batocavam nos corredores, quartos e salão. Para lá da porta de madeira cravada com desenhos de rosas e heras a treparem, no quarto onde aroma a flores subtilmente supera o tempo, as cartas na gaveta e as folhas brancas numa arca que nunca se abrirá. E o caderno... O caderno, repousado na escrevaninha, com páginas beges escritas com uma letra florida. A história de um tempo, de um passado, de uma mulher que viveu duas vidas, em duas épocas, num mundo em mudança, sempre aguardando as palavras que um dia ouviria. E ouvira... E escrevera... Em folhas brancas que nunca desapareceram.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Um Som No Fundo Da Rua



Um som no fundo da rua. Passo apressada pela calçada, fugindo do barulho sem nome. As vozes percorrem as paredes das casas habitadas. Chamas a emanarem das janelas fechadas. O som continua. Apressado e saltando atrás de mim. Corri, tropecei e levantei-me, sem nunca olhar para trás. Talvez o medo de me deparar com uma rua vazia, era maior do que aquele que teria se encontrasse um demónio ao meu lado. Sabia perfeitamente o quanto me custaria chegar a casa. A três ruas de distância…
A feira abandonada no fundo da primeira rua estava deserta, abandonada num passado doloroso para a cidade. Tendas com placares partidos. Telas de pano rotas e desgastas, apresentando as atrações fantasmas. A luz da lua iluminava-a como num filme antigo. Uma roda gigante, no meio de toda a decadência mantinha o seu esplendor macabro. Uma montanha russa era consumida pelas ervas que trepavam pelos carris e vigas, tornando-a num monstro verde. Carroceis num movimento petrificado no tempo, e as cores esbatidas pela chuva e sol.
Passei pelas grades ferrugentas e cobertas de arbustos. Por entre eles, consegui ver a magnânima e assustadora feira. O som atrás de mim continuou a seguir os meus passos. Corri mais um pouco, prosseguindo as sombras da lua e o gradeamento da feira. Nada me parava, apenas me aterrorizavam. As formas no chão, o zumbido do som ao fundo da rua e a loucura na minha mente. Se pudesse abandonar a minha fé, voltar-me para trás e receber de braços abertos o medo, talvez este não me voltasse a assombrar todas as noites. O demónio, que me seguia, mantinha-se sorrateiro nos seus passos cauteloso, apenas o som no fundo da rua vibrava o ar.
Apressei-me a alcançar a minha pequena casa branca. Passei o jardim do bairro. O vento abanava os baloiços vermelhos e amarelos. O escorrega metálico reluzia com o brilho prateado da lua no seu quarto crescente. Tropecei depois de atravessar o portão de minha casa. O som no fundo da rua continuava a ecoar pela estrada deserta. Não olhei para trás. A minha coragem mantinha-se inexistente, ou escondida no meu coração. Reparei que o som parara de me seguir. O vento trouxe nuvens que cobriram a lua, no momento em que abrir a porta e entrei em casa.
O leve cantar dos rouxinóis levantou-se. Da janela do meu quarto vi o nevoeiro que cobriu as estradas. A feira abandonada entrou na minha visão. A sua aura mística gritava pela luz da lua, presa nas nuvens. Toquei no vidro frio. O ar quente expelido dos meus pulmões, criava um fumo branco. Todas as casas tinham poucas luzes acesas, as ruas estavam acinzentadas e o passado tremia com o canto dos pássaros e o som no fundo da rua. Esperei uma mudança, um gemido de dor, um aperto no meu peito… Nada me aconteceu. Apenas senti frio, deitei-me na cama e adormeci com os barulhos que todas as caminhadas noturnas me apavoravam. Esqueci por momentos o sussurrou na minha janela. Fechei os olhos e disse “Adeus” aos sombrios vultos na rua. Que viesse na noite seguinte e me tentassem chamar. Hoje quem ganhou, foi eu.

sábado, 23 de agosto de 2014

Forte será a promessa do novo dia



Leve será a pena a voar sobre o mar. Brilhante será o sol no horizonte marinho. Contínua será a promessa de lutar. E ausente, num crescente e pensativo momento, pele morena iluminada pelos raios perdido de um fim do dia, um homem vive. Fugitivo a correr, tropeçando e caindo ao longo do caminho da verdade. Estrelas a iniciarem o seu trabalho. Trabalho árduo como aquele que o homem durante anos vivera, carregando mágoas, vontades, memórias de paixão, da família longe e perto, sempre com o coração a apertar com as saudades e nunca deixando de lutar pela sua vida, pelo seu futuro e presente.
Forte será a promessa do novo dia. Dia que virá. Na rua gritará um louco. Assustando as crianças e incomodando aqueles que passavam. Gritava sobre a escuridão no mundo e sobre os planos dos espirito para os não crentes. E o Fugitivo passava, ignorando a canção do louco. Tentando deixar o seu estatuto, tentando voltar para casa sem a amargura no peito, aquela dor que consome as almas dos bons homens.
Severa será a cobrança de um mal feito, de um dia para lá do alcance das mãos de um sonhador. Melódica será a canção dos vivos. Alegre será o ondular das ondas sobre uma praia coberta no verão de todos os anos. E o Fugitivo passa. Os seus irmãos e irmãs agarram-no pelas mãos e puxam-no para dançar. Rodopiando e ignorando o louco da rua. Fora criado a erguer a cabeça quando o vento o fazia falhar um passo e cair na terra seca. Fora criado a abraçar a sua família. E no trabalho árduo de um homem a viver pelo futuro, ele perdeu-se várias vezes como todos os seus iguais. Ninguém criticará, poderão unicamente olhar para ele e dizer o que vêm.
Esperançosa será a promessa daquele dia. O dia em que todos dançam em redor da grande mesa retangular. O dia que virá. A perdição será leve na sua mente. Todos os problemas pareceram distantes quando o sorriso dos seus pais perdesse nos seus rostos enquanto as memórias ecoam ao som da voz do homem e dos seus irmãos e irmãs. É um novo dia. Quando partir, serão cartas na gaveta, fotografias em álbuns, e palavras ao vento. No mesmo vento que o levantou pelo ar, atirou para o chão e ajudou a levantar inúmeras vezes ao longo da vida.
Leve será, leve foi e brilhante nunca deixará de ser a sua mente, a sua memória, os raios de sol a embaterem na sua pele ao se pôr no horizonte marinho, lágrimas em cascada por todos os passados e presentes em contínua promessa de luta. Nunca parando. Fugitivo um dia. Irmão no novo. Na forte promessa do ausente crescendo da melodia entoada na voz rouca da sua querida mãe, perdida nas linhas da manta, voando com o cheiro a pêssegos numa casa que o viu crescer. Na manhã ele continuará, seguindo o caminho iluminado por estrelas invisíveis, escoltando os mistérios dessa mesma promessa, desse mesmo dia.

domingo, 13 de julho de 2014

Virá o som do vento e a pena branca



Uma pena branca a voar pelo vento, bailando com as folhas, deixando o seu toque nos lugares mais obscuros das almas inocentes. O som do violoncelo numa manhã cinzenta, quando os suspiros reinam as ruas e a lua tenta desaparecer num horizonte escondido. A melodia rustica de um dia, os sonhos a voltarem neste ciclo parcialmente incompleto, e o dedilhar nas cordas deixando o sobressalto no eco. O "adeus" perdido num múrmurio. A pena suave e sedosa num constante voo pelo mundo.
A água do rio a chamar pela mulher de vermelho. A cantar ao embater nas pedras da cascata. Vezes e vezes sem conta. Corrente e vento numa dança circular.  E ela vem. Vem a pé pelo caminho de terra humida e raízes. O seu nome a vibrar por uma força invísivel, para sempre incompreensível pelos que os escutam sem serem merecedores. E ai vai ela. Levemente ela caminha. Passo e passo, para o rio de água fria.
Virá ela para o campo florido ou ficará na cascada arrebatadora? A pena voa em seu redor. A sua palidez em contraste com a violência viva do vestido. A floresta e os seus terrenos, nunca secos, dizem para correr, dizem para saltar e subir ás árvores. Virá ou não virá? Dançará ao som do violoncelo ou dedilhará nas cordas, criando a melodia do vento?
Os sonhos da sua noite, os pesadelos e os monstros escondidos nas sombras, dançam pelo ar sobre a corrente do rio, acelerando as águas. Se a mulher de vermelho chegasse, descalça e assobiando o ritmo e batucando na madeira das árvores de todos os momentos que o seu nome ecoasse pelo vento, talvez fosse o suficiente para cantar sobre a loucura num tom melancólico.
O "adeus" será dedilhado nas cordas do violoncelo e morrerá nas águas do rio. Virá ou não virá? Quando para a pena branca? Quando deixa o vestido vermelho de esvoaçar no vento quente de um verão inconstante? A melodia rustica para a loucura de ondular nas vibrações da água. Virá ou não virá? O tempo para, o silêncio inunda um mundo cinzento, a melodia abranda até á extinção. Sim... Talvez... A pena branca poisa. Os passos são o único eco na floresta depois das ruas, debaixo do olhar inexistente da lua. Passos firmes. Virá...