Para o Pedro, que me inspirou com as suas palavras, levando-me no final a criar este texto para ele, para todos os leitores e, até certo ponto, para mim própria.
As
páginas brancas do caderno que repousa aberto na escrevaninha recolhem o pó da
casa abandonada. Num tempo em que nada era se não elegância e melodrama, vi os
corredores cobertos de retratos dos antepassados que nunca conhecemos. Esperei
pela noite, quando a lua estava bem alta e cheia no céu estrelado. Vi os raios
a atravessarem os vidros tenuemente manchados do sol e do passado imperturbado.
Se não soubesse melhor, diria ser capaz de encontrar as memórias ainda no ar
das divisões, no caderno aberto e intocado em cima de um tampo de madeira
escura e cravado com a bela arte de um artista desaparecido.
O
salão, amplo e gritando por uma melodia, resguarda a sua beleza do sofrimento
alheio, das crianças que tentam ver por entre os vidros sujos, do futuro
marcado a um passo cego. Entro de olhos abertos. Sinto aquela energia romântica
no ambiente quieto, as memórias de centenas de pessoas dançando naquele chão com
cores cremes intercaladas com aquelas que noutrora foram vibrantes. Fecho os
olhos e respiro fundo, imaginando um mundo nunca antes visto, se não nos anos
guardados pelas paredes beges, pelas cortinas vermelhas, pelo pequeno palco
onde uma banda tocaria para divertimento de todos. Vejo as pautas quebradiças
perdidas no chão de madeira desse mesmo palco.
Arregaço
o vestido comprido e negro como a noite de há milhares de anos. A lua
entrega-nos os seus raios, tranca a paixão nos quartos fechados e respira sobre
as páginas brancas de um caderno. Temo nunca ser capaz de escrever nele.
Deixo-o repousar na escrevaninha de minha mãe, avó, bisavó, e todas as mulheres
que me antecederam. Viro costas ao salão, acreditando que ao manter o meu
percurso, talvez as memórias desapareçam na minha mente e me deixem terminar o
luto. Subo pelas escadas de mármore, o eco dos meus passos levantam-se,
deambulando por um corredor deserto. Tapeçarias expostas nas paredes frias de
pedra, grandes lareiras com restos de cinzas, cadeirões de veludo, camas de
postes, rendas a tombarem, criando uma barreira quase opaca.
Deparo-me
novamente com o quarto, em tempos meu, num passado onde a loucura de um amor
era dramática, onde partíamos o pão dizendo sermos justos para os criados e
para todo o mundo. Peço por uma palavra, uma simples palavra, tal como as
folhas brancas suplicam pela pena que trará a tinta. Pela janela da varanda
vejo o jardim arbóreo, as heras a treparem pelas paredes de pedra, as flores e
arbustos a crescer com a liberdade que nunca tive. As cicatrizes que a fonte me
dera, ao descobrir a verdadeira fachada daquele que jurara sobre a campa de sua
mãe o seu amor por mim. Os momentos passado sobre a sombra do grande
castanheiro, sentada numa manta colorida que eu própria tecera, vendo os
pássaros voarem de ramo em ramo, colhendo flores para uma coroa, e esquecendo o
presente entretendo-me com os meus pensamentos. Todo ele, toda aquela natureza
agora irregular, trazia-me um sentimento nostálgico.
Passei
a ponta dos dedos pela cadeira em frente da escrevaninha. Aquela que fora o
alento dos meus suspiros, a guarda das minhas aflições, o apoio que necessitava
para as cartas. Respirei fundo, para além de todo o pó e tempo que acumulava-se
nos tecidos, o cheiro das rosas deixadas todos os dias nos jarros, ainda
flutuava. Talvez fosse a minha alma relembrando o quanto aquele lugar era o meu
lar, a minha infância, o meu passado. Doía tanto ver todos os cantos da casa,
só para voltar a dizer “adeus”. Uma lágrima caiu pela minha bochecha, secando
no pescoço. O aperto no meu peito, a loucura na minha alma, o drama entranhado
nas paredes do quarto fizeram-me tremer.
Sacudi
o acento almofadado da cadeira, e sentei-me. Esperei aquilo que pareceu uma
eternidade, apenas sentada, mãos no meu colo, vestido caindo pelas minhas
pernas e raspando delicadamente no chão de pedra. Soprei o pó do caderno vazio.
Partículas voaram à minha frente, brilhando com os raios lunares. As páginas,
em tempos brancas, eram agora manchadas pelo bege. O tempo atacara-as como
todos os outros vidros, paredes, escadarias e memórias. O tinteiro secara. Abri
com cuidado a gaveta e peguei no monte de cartas atadas com uma fita azul
clara. Sorri. Não seria hoje, nem amanhã sequer. Fechei o caderno e peguei nas
memórias do meu passado. Levantei-me com cuidado e caminhei em direção da
porta. Respirei uma última vez, aquele aroma fantasma de flores que morreram
nos vasos pintados com cuidado e paciência. Passei os olhos pela beleza
iluminada pelo branco da lua e fechei a porta de madeira.
Desapareci
nos corredores como se fosse o vulto de uma casa assombrada. Murmurando a
melodia de uma música à muito perdida. Vagueando nas memórias de um passado
onde havia exagero nas roupas, onde loucuras por amor eram descritas em livros,
onde suspiros pelos cavalheiros ressoavam pelos salões. Um instante na vasta
época… Leve seria o meu sussurro, abafado pelas tapeçarias nas paredes,
crepitando com as chamas que aqueciam a casa numa altura possuída pela
excessividade. Desaparecerei pelos corredores com as cartas e caderno nos
braços, de luto por uma pessoa que nunca ninguém compreenderá, sozinha para
viver a existência como a assombração no fundo de uma rua. Procurando o amor
que não me falhe, aquele que escrevera as cartas.
Folhas
brancas na arca trancada a sete chaves. Deixada debaixo de uma cama não usada
há alguns milhares de anos. Pedindo um beijo de boa noite como todas as outras
damas na minha sociedade. O meu riso embate contra todas as paredes. Folhas
brancas num caderno vazio. O vulto que se vê pelas janelas com o toque opaco,
faz fugir quem nunca teve no coração a coragem para entrar e dançar com aquela
que durante anos aguardou.
Ouvi
a porta pesada ranger, o vento entrou trazendo consigo folhas secas. Escondi-me
nas sombras do topa da escadaria principal. Caminhando com uma certa
determinação, ignorando os apelos de quem quer que esteja do outro lado, na rua
fria, ele entra. Espreitei, saindo do meu esconderijo. A memória de um tempo em
que correndo atrás de uma menina, o vi correr. Escondida atrás do mesmo
castanheiro que me dava abrigo do calor. Ele parou a passos de mim. Lembro-me
de poisar o caderno branco por escrever, o mesmo que tinha nos meus braços, aquele
que prometera marcar no momento em que nos voltássemos a encontrar.
Atravessei
o corredor e desci as escadas. Fios de cabelo a caírem sobre a minha face.
Fixei-o nos olhos. Os mesmos olhos que me fizeram apaixonar pela primeira vez
por ele. O tempo parou. O vento deixou de soprar. Os apelos cortaram. O toque
dos seus dedos, enquanto afastava os meus cabelos, era quente. Em segundos…
Desaparecemos. Um riso fez ouvir e passos batocavam nos corredores, quartos e
salão. Para lá da porta de madeira cravada com desenhos de rosas e heras a
treparem, no quarto onde aroma a flores subtilmente supera o tempo, as cartas
na gaveta e as folhas brancas numa arca que nunca se abrirá. E o caderno... O
caderno, repousado na escrevaninha, com páginas beges escritas com uma letra
florida. A história de um tempo, de um passado, de uma mulher que viveu duas
vidas, em duas épocas, num mundo em mudança, sempre aguardando as palavras que
um dia ouviria. E ouvira... E escrevera... Em folhas brancas que nunca desapareceram.