O som cortante do vento
penetra a minha mente cansada. Os meus olhos fecham. Pálpebras pesadas e iris
gelada, como se o pilar daquilo que sou tivesse coberto de gelo e frio
avassalador. As palavras perdidas no vazio que é o meu coração. Perdidas no
fundo do abismo aterrador. A suavidade com que a escuridão me atinge é
inimaginável. A imperfeita dose de corrupção e solidão é imbatível naquele
lugar. O sofrimento provocado pela tentativa de me proteger do líquido
primitivo, é solenemente pintado na minha pele.
Petrificada e consciente
dos horrores da, poluída e imortal, alma que habita o meu corpo decide fazer.
Parto continuamente o vaso sagrado da minha infância, enquanto a música do
violoncelo toca brandamente. Nego a minha loucura. Nego a sua existência maquiavélica.
Mutilo aquilo que resta da minha sanidade e sorrio enlouquecida com o sangue a
escorrer pelas minhas mãos.
Sangue que não é meu. O
meu perdeu contra o líquido fel, que reinava nas masmorras da minha mente. E o
sentimento de derrota não ajudava a minha verdadeira natureza. Fazia-me vibrar,
sorrir ao ver as minhas mãos tingidas de puro escarlate. Pés assentes no fundo
da pequena poça de mel vermelho. O som, agora frenético, do instrumento mortal
torna-me sedenta por mais um copo do néctar que fora coberto de vida. Parti a
minha pureza em milhares de pedaços. Não havia volta a dar depois de estar um
passo mais perto do terror.
Sujo as paredes brancas
com aquilo que não é meu. Satisfaço a minha morbidade com o deleite de ver cobertas
todas as imagens do incerto. De ver as telas por pintar, marcadas a seco pelos
impuros. Loucura ampliada pela música que ecoa no espaço infinito da saudade.
Lágrimas a escorrerem pela minha face, como água a descer numa cascada. Lábios
vermelhos a tremerem num sorriso macabro.
As notas da canção saltam
pelo ar e refletem nas paredes manchadas. A beleza da imperfeição e da insanidade
não me deixa descansar em paz. Não há paz. Apenas sofrimento, satisfação e
pesadelos. Somente brilha o fogo consumidor durante a noite. Escuridão em redor
da solidão. Sangue derramado no vaso da mente. Sangue que não é meu. Sangue que
vi ser espalhado pelos anjos da noite.
Perdição no mar de rosas.
Se é que tal maravilha exista. A vida perfeita, sem preocupações, sem momentos insanos.
A sorte de poder algum dia nos vermos perdidos nesse mar é a ambição de
milhares. Até, talvez, minha. Talvez também, eu realmente queira deixar o
quarto tingido para viver num mundo onde as únicas cores são as flores e as
árvores. Onde as únicas cores vivas são as dos animais e da nossa pele. Será o
absoluto adeus aos olhos e cabelos arco-íris. Será unicamente branco.
Não. Não acredito que seja
esse o destino que desejo escolher. Um mundo onde perderíamos a loucura. Que
mundo seria esse que aquilo que nos torna sãos é aquilo que nos priva da nossa
escuridão? Nada de nada. Ocorrerá o fim antes do fim. O que parece bom é na realidade
mau. Nada é o mar de rosas. E se tal mar exista então foi altamente elevado a
uma existência improvável. Duvido que a sua existência seja tão simples. Não
será então por amor. Nem mesmo pureza. Será por loucura!
Será por essa razão que
recusarei a entrada no barco. Para ter a insanidade que tenho direito. Será
pelos olhos cansados e as paredes tingidas. Será por ver os anjos da noite
cobrirem a minha casa com véus de escuridão e luminosidade. Para ter a minha
vida como deve ser e não pincelada perfeitamente. A imperfeição é o que me faz
sorrir. É isso que me faz molhar as mãos no lago vermelho e sentir-me demente. Porém,
é o que me leva a levantar de cada vez que caiu no abismo. A sua existência é o
que me leva a sair e a abrir os olhos. Porque nada existe neste mundo se um
pouco de loucura e fé.