Para a Rute. A minha 'twin', a minha irmã de outra família, a minha melhor amiga.
Um trovão rompe o céu com
uma explosão de luz. Eu era nova e a história não tinha sido ainda contada.
Mais um trovão e mais uma estrofe cantada pelos anjos. O mar nem sempre fora
monótono e o jardim desprovido de essência. Eu bem me lembrava do tempo em
corria por entre os canteiros e pisava a relva húmida. Do tempo em que deixava
pegadas na areia molhada porque me fazia sentir livre. Sem destino, com sonhos e
com expectativas de um futuro que poderia nunca acontecer. Mais um trovão… Mais
uma memória despedaçada no abismo.
Nada me salvaria da
tentação. Da doce tentação de ver as memórias de um passado longínquo. A
tempestade aproxima-se e eu mantenho-me sentada nua aos olhos dos anjos,
ouvindo as suas melódicas vozes cristalinas. As harpas tocam à medida que mais
um trovão explode no ar. O mar bravo embate em tudo o que encontra no caminho e
as flores do jardim há muito que morreram. E eu vou. Continuo a caminhar com
toda a energia que tenho para dispensar. O sabor a salgado afoga-me a garganta,
enquanto o novo trovão cega-me por segundos. Novamente passos na areia
insipida…
Larguei os sapatos no
rochedo e caminhei. Marquei pela milésima vez o chão arenoso. O mar começava
agora a acalma, ainda assim eu sabia perfeitamente que ele era imprevisível e
que mais cedo ou mais tarde voltaria a rebelar-se contra a costa. Vi uma luz no
horizonte da praia. Ora aparecia, ora fugia para o outro lado do mundo. A
estrela artificial daqueles que procuram rumo. Era capa de jurar que sentia as
almas das flores comigo. Seria eu a sua estrela guia? Ou seria eu apenas uma
fonte que lhes cede energia para que ela se mantenham fixas no mundo onde vivo?
Dois passos firmes… Pés enterrados na areia fria…
O cheiro da maresia embriaga-me
e o som da tempestade juntamente com o rebentar das ondas nas rochas refortalece-me.
O “aqui” e o “agora” não só nada mais do que lugares e momentos que rapidamente
são levados pela corrente. Por cada três passos para o futuro, dois deles são
lavados pela água desapaixonada, carenciada de vida. E a tempestade continuava,
iluminando a minha cara mórbida. Senti a energia das almas perdidas e os meus
passos tornaram-se cada vez mais fortes, deixando pegadas mais profundas e
salientes.
Deus me acuda! Nada me
parecia libertar da tentação que as memórias me provocavam e da sensação
delirante proporcionada pelos sentidos. Decidi continuar. Talvez fosse para o
melhor. Perder-me na praia e ser levada pelo vento da tempestade. Ficar curada…
Talvez… No infinito recente...
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