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sábado, 3 de novembro de 2012

O Rei, a Guerra e o Reino de gelo

   O que será que se esconde nos corações fracos dos homens? E por detrás de todas aquelas muralhas? Será o rei? Será que ele não passa de mais um corpo frio sentado no trono de madeira? Ele só poderá ter um coração de gelo se não, como poderia ele deixar as crianças chorarem pelos pais? Como poderá esse ser o verdadeiro rei deste reino? Como pode ele matar em nome da felicidade de outros? Porque é que ele proclama que Deus fez dele o senhor intocável e lhe concedeu todos os bens materiais quando a única coisa que Deus lhe deu foi a capacidade de viver? Não terá aquele que se intitula Rei a capacidade de ver o mal que acorre no reino? Talvez Deus o tenha feito mesmo intocável, imune a qualquer bondade, alheio a tudo a não ser a sua própria barriga.
    Ele não sabe, ninguém sabe que a rapariga que viu o pai e o irmão ir para a guerra do rei esperava todas as noites, olhos postos no horizonte e mãos agarradas no fio com uma pequena águia, que o seu irmão talhou especialmente para ela. Ela espera, espera e espera até adormecer. Ninguém sabe que a esposa todos os dias vai à falésia e espera ver o barco que vai trazer o seu marido vivo e saudável de volta. Ninguém sabe a dor que as mães, esposas, noivas, irmãs e primas sentem ao ver a esperança partir por não receberem nenhumas noticias daqueles que lhes são especiais.
    Um dia, mais um dia de muitos que passaram, um barco acabava de chegar. Negro dentro e fora. Da guerra vinha noticias. Pais, irmãos, avôs, maridos, noivos, muitos mortos. Os restantes estavam feridos e faltavam poucos dias para chegar. O rei subia calmamente, para a varanda central do palácio, e disse para todos os ouvintes as noticias. Não falou nos nomes dos soldados, dos generais que morreram, esses foram referidos, mas não os nomes dos pobres soldados que tinham sido arrancados do calor das suas casas para ir para as chamas da batalha.
    Mães gritaram, esposas agarraram as crianças e choraram. E as damas, senhoras de nome e nariz, pegaram num lencinho perfumado e limparam três lágrimas secas do canto dos olhos vermelhos. Mas o povo feminino mantinha-se destroçado. Mais ficaram quando os restantes barcos chegaram. Aqueles que viveram puderam reunir-se às suas famílias. A menina que dantes esperava agora tinha o irmão junto dela, o pai tinha voltado mas bastante ferido. Viveu para despedir-se da filha mas em dois dias partiu com a Senhora da Morte. O marido da Senhora da falésia não voltou da batalha no mar e ela sem filhos ou outros familiares deixou o Senhor do Mar leva-la quando caiu na água.
    As coisas pareceram estar mais calmas, apesar de todas as tragédias. O rei continua o mesmo coração de gelo. Algumas famílias continuam de luto outras tentam festejar. Mas se eles pensam que a vida de guerra acabou estão enganados. Com um monstro como rei será difícil parar o sofrimento. A vida neste Reino de gelo continua, implacável. Continuará até o rei derreter e o trono arder. Por enquanto as muralhas do Reino continuarão a ser frias e inquebráveis.

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