Virá o dia em que um anjo, perdido no seu próprio
inconsciente, volte as costas ao horizonte e parta para o rio das sombras. Nem
no céu nem na terra, a água da vida o poderá salvar da destruição profunda.
Durante toda a sua sublime existência, o anjo partiu corações, guiou almas
pelos caminhos de terra, sangrou em batalhas, testou a coragem e força da mente
humana, despedaçou a capacidade sorrateira de atingir o pedestal.
Caiu mil vezes e mil vezes regressou. Voltou marcado
pelos animais dos terrenos inferiores e superiores. Marcado com golpes
sangrentos de miséria e ignorância. De todas as lutas e malevolências,
a necessidade de seguir o curso do rio, desde a nascente à mortífera foz, foi,
é e sempre será a mais inconcebível queda. Alias, nada tornaria mais doce a
viagem que a companhia amada daqueles que conquistaram a selva das promessas
esquecidas.
O tempo encurtou os seus dias. O rio fervilhou e gelou
sete vezes. Os demónios roubavam a dor dos humanos. O anjo partiu. Deixou de
sentir. Viu e largou. A viagem seria atribulada e a partida nada adiantara se
não um sabor, meloso e imperfeito, de que algo perder-se-ia nas correntes. Nos
olhos nada mais do que uma ponte queimada e abatida. Coração gelado e parado.
Alma desfeita e possivelmente incapacitada.
Passo a passo ele foi encaminhado para limbo. As almas angustiadas
disseram para ele larga, disseram para ele esquecer. Com os olhos brancos e dissipados,
ele seguiu. Ignorou o tempo, o sol, a lua e as almas. Virá o dia. E esse dia
chegou. Parte da alma consumida pela desonra, desapegada das raízes que o
fixavam na terra e no céu. As mãos atadas com fios invisíveis. As cores
derretidas a escorrerem pelos seres vivos. Tudo o que fez, observou, viveu,
derrotou e destruiu fazia ricochete nos espelhos do mundo.
Devia saber que o dia chegaria. Devia tê-lo sentido com
todo o sangue que tinha a correr pelo corpo. Devia ter previsto a decadência do
seu ser. A fuga inconsciente do abismo não devia ter definido a sua queda. Se é
vida que o mundo quer no futuro, talvez não seja tarde. Talvez... Talvez exista
esperança.